quinta-feira, 30 de abril de 2009

Desarrumação


Só a sombra afaga esta fogueira de tábuas magoadas.
Os restos da janela encobrem a desordem dos lençóis,
as feridas em farrapos, os baús fechados,
os embrulhos bizarros que ocultam no escuro,
os telhados e as folhas que encobrem os becos.

Os terraços já deixaram cair os bichos da incerteza.
Alheios à desarrumação decadente da indiferença,
à violação dos dias, dos sítios sem nome,
às paredes quebradas que arrastam o tempo,
onde se esconde o silêncio dos forçados à fome.

Digo bom-dia às ruas, mas só as folhas me respondem.
Só os bêbedos afastam a Lua para ver as estrelas,
entre as pedras nuas, numa cama estreita,
entre os safanões no chão descomposto,
entre as tralhas gastas, nova vida espreita.



Texto: Victor Gil

Fotografia: Pedro Gil

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Repouso


Já que não posso amanhecer-te,
deixo-te que repousar no meu colo.
Mas só se adormeceres nas tábuas isoladas,
se não falares das coisas que me tentam,
se deixares de invadir com rasgões as madrugadas.

Deixo-te repousar da mansidão da noite,
sacudir as ruas devoradas pelo sol.
Mas não pronuncies as palavras do silêncio,
não espalhes os braços que abandonei,
porque não quero derramar-me em teu regaço.

Deixa-me mergulhar dentro da manhã,
entregar-me à limpidez do dia.
Mas não libertes os troncos escondidos,
nem as raízes onde eu anseio regressar,
nem transformes o momento em ventania.



Texto: Victor Gil

Fotografia: Pedro Gil


terça-feira, 14 de abril de 2009

Para Além dos Muros


Vou mandar arrancar os portões,
passar para além dos muros,
alterar a extremidade das veredas.
Afastar os postigos das estrelas,
onde me espreitam só as tardes inquietas.

Nada mais existe senão o horizonte
a abrir-se ali mesmo adiante,
limitado entre os marcos das paredes,
entre o clamor da luz do firmamento.

Onde a mudez das pedras são lamentos,
onde as orlas dos caminhos são silêncio,
sem palavras para mandar calar o vento.



Texto: Victor Gil
Fotografia: Pedro Gil